Rapsódia em agosto | Akira Kurosawa
No dia 29 de agosto de 2014, o Espaço Wulin – de Teresa Sell -, promoveu uma sessão de cinema com chá e muita conversa com o filme:
Rapsódia em Agosto | Diretor: Akira Kurosawa (1991)
Pelas lentes de Kurosawa – que escreveu e dirigiu o filme -, as sequelas deixadas pela guerra no sentimento das diferentes gerações ocupam o centro do filme, mostrando diferenciadamente como a guerra e a posterior ocidentalização moldaram o comportamento e o caráter das gerações.
A avó expressa grande alegria por estar junto com os netos naquele verão. Embora não apreciem sua comida, Kane não se opõe em entregar a cozinha à sua neta. A refeição lhe é sempre motivo de profunda gratidão, e a reverencia antes de se servir, mesmo a preparada ao paladar dos netos. Estes são a geração pós-ocidentalização, a geração que exibe roupas com motivos norte-americanos, crianças que nasceram durante o Japão em franca recuperação econômica quando os laços com o ocidente, EUA principalmente, já estavam bastante estreitos. Seus pais são a geração do pós-guerra, a geração produtora que cresceu durante a frenética recuperação do país e construiu seu quotidiano em volta do trabalho. Mergulhados neste mercado, não têm tempo para olhar para o Japão cultural, das tradições, da poesia, do romantismo, da primazia dos sentimentos. Estão fortemente condicionados pelas circunstâncias: temem constranger ao expor ao primo norte-americano Clark – rico plantador de abacaxi no Havaí – a morte do pai causado pela bomba atômica jogada pelo seu país, e com isso, perder eventual emprego. A riqueza dos parentes havaianos é objeto de admiração: a casa majestosa, a piscina, o luxuoso automóvel e a enorme fazenda de abacaxi.
Kane, a velha senhora que vivenciou a bomba atômica de Nagasaki em 9 de agosto de 1945, carrega ressentimentos sobre os que atiraram a bomba. Enviuvou naquele dia quando seu marido morreu enquanto lecionava numa escola. Sua mágoa não se prende à guerra em si, mas à nação que jogou a bomba e fingia ignorar o fato. Traz no corpo a cicatriz da radiação – marca indelével a lhe expor o crânio parcialmente desnudo -, memória inapagável de uma guerra que ainda não se findou, cujas vítimas vivem ainda com sequelas provocadas pela radiação. Personifica o Japão tradicional, antigo, que viveu a guerra, ressentida com a estupidez dos humanos que lhe tirou o marido, a cidade e a comunidade em que vivia, mas ainda o Japão dos sentimentos puros em que a convivência harmônica assume seu mais alto valor. Serena e às vezes silenciosa convivência, onde palavras são desnecessárias para se contemplar o luar com os netos ou para se comunicar quando recebe visita de uma amiga, também enviuvada pela bomba. “Pessoas conversam sem palavras”, explica a avó .
Kane perdeu um irmão, Suzukichi, que definhou aos poucos; perdeu todos os cabelos e vivia recluso desenhando apenas olhos – o que mais temia, o que observava sua deficiência física. A avó diz que o neto mais novo é muito parecido com o irmão falecido, o que foi motivo de zombaria por parte das demais crianças. Relata o salvamento do irmão pelo monstrinho Kappa – que o retirou das águas onde estava se afogando. A razão se manifesta nos dizeres do neto mais velho ao duvidar do salvamento de uma criança por um monstrinho tão pequeno e de pernas e braços finos. Mas logo todos correm assustados aterrorizados pelo monstrinho verde – peraltice do menino mais novo, o que era zombado por se parecer com Suzukichi. A jovem geração, a da razão, em conflito com a antiga, a mística, das fantasias e lendas.
Com a visita do sobrinho Clark, Kane e Clark se reconciliam, debitando à guerra os tristes acontecimentos. Criticado pela sua visão ingênua da guerra, Kurosawa respondia que as pessoas não querem a guerra; quem a deseja e faz são os governos. Seus filmes são apolíticos, distantes dos interesses e das querelas entre nações. Falam do homem: sua vida, seus dramas, suas alegrias e tristezas. Trazem sempre a mensagem da boa convivência humana. Analogamente, como Voltaire declarou, possivelmente se sentia homem antes de se sentir japonês.
Ao longo da narrativa os netos descobrem na avó o Japão tradicional, do cultivo de afetos, de sentimentos puros intocados pelas circunstâncias da vida. O Japão do silêncio que conversava, que via poesia na lua cheia ou na flor solitária à beira do caminho.
O filme parece entrar num estado catártico a partir da reconciliação: o órgão que inicia o filme desafinado, agora afinada e harmoniosamente as notas musicais acompanham o canto entusiasmado dos netos: “o garoto viu a rosa no meio do gramado, brotando em toda sua inocência. Tudo lhe foi revelado; uma incessante fascinação.”
Após a morte do irmão, pai de Clark, a avó perde o senso do real e enxerga o irmão morto a visitá-la; o clarão de relâmpagos a faz proteger os netos da radiação da bomba atômica.
O filme termina em meio a terrível tempestade, cujas nuvens pesadas e escuras conduzem Kane à Nagasaki da bomba. E para lá caminha a franzina sobrevivente para salvar sua família, tentando se proteger com um pequeno guarda-chuva. A cena traz a densidade imagética declamada por um menestrel das telas: o Japão antigo corre para não ser destruído, para preservar seus valores culturais, seguido pela geração que foi moldada pela ocidentalização mas que não quer perder o Japão antigo. A geração ocupada com o trabalho, sem tempo, agora abandona tudo para correr atrás do que nunca tivera tempo para cultivar. O Japão antigo avança fragilizado, com dificuldade, porém vivo e resoluto com força para fazer seguidores. Permeando o Japão do passado, do presente e do futuro, como a uni-los sob uma única onda que lhes dá significado, a chuva torrencial a lavar ressentimentos, a aguar uma nova realidade na expectativa do nascimento de um novo amanhã. Com o esgarçar da proteção, agora o Japão se entrega plenamente à força da onda renovadora.
A inocência foi descoberta; uma incessante fascinação.