Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera
Na última sessão de cinema tivemos a grata e honrosa presença do monge zen-budista Genshô para conversarmos sobre o filme “Primavera, Verão, Outono, Inverno…e Primavera “ do cineasta sulcoreano Kim Ki Duk. É a primeira vez que conversamos ouvindo alguém com domínio de cátedra, um professor a nos ensinar. Nossa sala, que é apenas uma reunião de amigos que gostam de conversar sobre o cinema-arte, teve nessa noite claras elucidações da doutrina budista mostrada no filme.
Sob o olhar de um leigo, que pouco conhece do assunto, o filme me encantou pelo clima de delicada e serena poesia e pelo didatismo da doutrina budista que vi expressa nos episódios.
O filme me pareceu aliar a amplitude e o dinamismo do cinema com a limitação de espaço do teatro, requerendo um pouco de imaginação de quem assiste; aliás, desejável para quem quiser enxergar ali ensinamentos do budismo. Como nos filmes de Yasujiro Ozu, o filme é pródigo em metalinguagem, em cenários que sugerem submissão irrefletida a ímpetos da atração, transpondo paredes invisíveis que separam os quartos, embora existam portas. Ou a construção do episódio da imobilização do monge novato, culminando com o efetivo aprendizado ou seu despertar. A transposição de portas é uma alusão à obtenção do conhecimento, segundo nos ensina monge Genshô. Passamos para uma outra dimensão. No portal de entrada do templo, localizado às margens do lago, vemos duas figuras assustadoras esculpidas nas portas. Parece uma advertência para os que buscam esclarecimento: é preciso coragem, é preciso determinação para o que se busca; os pusilânimes e apáticos ficarão de fora. Sapere aude, diziam os gregos: os que querem conhecimento, ousem saber.
O título nos mostra claramente o ciclo da vida resumido nas quatro estações que se repetem infindavelmente. Inicia-se na infância com a descoberta do mundo exterior e experimentação de seu poder, passa pela juventude vivendo os prazeres e os perigos da paixão, do sexo, da entrega total, incondicional. A volta à normalidade passa por dramática recuperação. Ao final, como explicou o monge Genshô, o ciclo se fecha com a alegoria da morte do velho monge e o novato, buscando a iluminação no alto da montanha. Sempre a primavera, nunca as mesmas flores, diz o provérbio japonês. As personagens mudam, a vida continua no seu ciclo, estação após estação, como o círculo que não tem início nem fim. Cada início é um novo começo, como o templo vazio esperando pela ocupação. O reinício conserva instruções e vestígios deixados pelo ciclo anterior, como raízes e tronco da árvore, prontos para o florescer da primavera.
Locar um templo flutuante no meio de um lago calmo, límpido me pareceu uma referência à nossa mente, nosso mundo interior, acessível por intermediário, por veículo adequado. O barco usado no filme é citado em parábolas budistas como veículo de transporte de pessoas que buscam a iluminação como esclareceu monge Genshô. Buda dizia: “a doutrina é uma balsa; uma vez atravessado o rio, para que levar a balsa nas costas? Deixe-a na margem onde poderá ser útil aos outros; você já não precisa dela”.
O nome do templo Daeunjong que aparece na inscrição do barco-templo, é o nome de um famoso templo budista na Coreia. É conhecido local de aprendizagem, de aprimoramento, de formação, de educação, de preparo para o esclarecimento, para a iluminação.
Embora advertido pelo mestre, o jovem monge não resiste à sua paixão, se entrega totalmente e acaba cometendo homicídio, tal como previra seu mestre (a luxúria desperta a posse e a posse, o desejo de matar). Extremamente perturbado, perdido e carregado de ódio, volta ao templo. Aí tenta o suicídio, fechando (significado do kanji que escreve no papel) os olhos, a boca e o nariz, tentando se sufocar. Neste instante o mestre aplica-lhe uma vigorosa surra com um bastão de madeira deixando-lhe extensas cicatrizes pelo corpo. A seguir amarra-lhe todo o corpo e o pendura por inúmeros cordões presos a uma figura quimérica, corpo de peixe e cabeça de dragão. Sob os cordões, uma vela acesa que o liberta assim que queima as amarras que o prendiam à fantasia. Monge Genshô faz referência ao peixe como figura adotada pelo budismo porque é animal que nunca fecha os olhos, por isso está sempre atento, como o seguidor da doutrina, acautelando-se para, como o peixe, deixar de enxergar o oceano.
O jovem monge estava em extremo desespero. Quis ausentar-se e negar o mundo – origem do seu sofrimento -, recusando-se a vê-lo no ato de praticar o suicídio. Ao aplicar-lhe a surra, o monge levou o novato ao extremo da sua ilusão. Antes o pensamento era: eu sofro, eu fui traído, eu abandonei tudo e me doei totalmente. O pensamento estava completamente tomado pelo Eu. Após a surra, o sofrimento estava em uníssono: mente e corpo extremamente doloridos, exangues, prostrados. Ali não havia espaço para nenhum outro pensamento. Apenas para o espanto, de onde nasce a sabedoria, como afirmavam os gregos. O método aplicado pelo mestre, me parece, agiu vigorosa e eficazmente no âmago da causa. Foi o tiro certeiro na cabeça, no meio de olhos iludidos que recusavam o mundo. Como diz Buda, citado por Sponville: “toda vida é dor, e dela só podemos nos libertar se primeiro renunciarmos a nossas esperanças.”
Essa atitude do mestre me pareceu superior à atitude até mesmo de pais. Há um provérbio em japonês que diz: “para situações excepcionais, medidas excepcionais “. Um pai, parente ou amigo possivelmente impediria o suicídio removendo a causa do perigo e talvez, posteriormente demovendo o suicida do seu intento. Se conseguissem, o suicida desistiria do seu objetivo apenas pela interferência de outrem, sem tocar na causa. Esta ali permaneceria intacta, encoberta, num silêncio gritante. A Psicanálise diz: você cuida da sua sombra ou ela cuida de você. Diz-se ainda que tudo fica registrado na psique e a função das terapias é construir caminhos alternativos que desviem da causa do sofrimento. Ao se romper as amarras que o prendiam à ilusão, o monge inicia seu aprendizado escavando com o mesmo instrumento do crime, palavras que o mestre escreveu na madeira com o rabo do gato que trouxera para o templo. Me parece um mantra. Escavar lhe exige esforço, concentração, leitura forçada. Mais do que leitura forçada: as palavras adquiriram perenidade com o contributo involuntário da Natureza vivente incorporada ao mundo interior. O instrumento utilizado no crime é neutro: a finalidade depende apenas da vontade do homem, como lhe ensina o mestre, ao fazê-lo utilizar como instrumento da sua didática. O novato inicia sua tarefa aplicadamente, disciplinadamente, escavando com ânimo os caracteres. Tem as mãos ocupadas e na mente, a lhe espicaçar, a grave advertência do mestre: matar é fácil; morrer não é tão fácil assim. Com a tarefa estafante, o mestre quer apenas que o discípulo não pense. “Quem pensa não percebe; quem percebe não pensa”, diz a doutrina budista.
Ao compreender a Realidade assume atitude monástica: corta o cabelo e inicia a busca do seu aprimoramento. Esculpir a imagem de Buda no gelo me pareceu uma reverência ao ensinamento de que tudo muda, tudo se transforma, como ocorreria na próxima estação. Arrasta uma pedra circular como os ciclos da nossa vida terrena que, no infindo nascimento e morte, perfaz um círculo. Carrega além do sofrimento da vida terrena, seu esteio espiritual, que lhe escapa no íngreme caminho, podendo lhe aliviar a carga, mas é recuperado com determinação. A Natureza, absolutamente indiferente à existência do ser humano, contribui para o aprendizado do novato ao contrapor imensidade à pequenez, ao nada do homem, caminho para a libertação do eu da prisão. Prendemo-nos à ideia da existência, da ilusão do eu. Comenta o assunto Sponville: “o eu não é aquilo que se trata de salvar, mas aquilo de que se trata de nos libertar.”
O mestre e a criança são representados pelos mesmos atores. Talvez generalizando as diversas experimentações e descobertas da infância e a fase da velhice, a vida sábia, experiente, que subsiste despersonalizadamente nas palavras, na pedagogia dos ensinamentos. A vida múltipla, que passa pelo aprendizado interior experimentando os extremos dos sentimentos é a juventude, representada por três atores. O destino trágico de órfãos e de mães solteiras envergonhadas é também um dos múltiplos dramas da humanidade ali mostrados.
A última cena do filme mostra um monge em meditação, em paz, e a câmera viaja até a cratera de um vulcão extinto que abriga o lago, em cujo centro flutuava o templo. Aos poucos o templo se desloca do centro e se une à margem. Agora interior e exterior, corpo e mente, estão juntos, unidos em harmonia sem necessidade de veículo ou intermediário para o acesso.