Hiroshima mon amour
Hisae Y. Kaneoya, colaboradora do NIPOCULTURA participou como comentadora do projeto “CEARTH NO MUSEU”, na Universidade Estadual de Santa Catarina. Na ocasião, foi apresentado o filme Hiroshima mon amour. Segue abaixo o texto produzido por Iochihiko Kaneoya sobre a obra de Alain Resnais:
Todo o filme poderia ser reduzido no princípio, na força do haicai imagético escrito por Resnais na tela: o amor flui sob as cinzas, movimenta-se, encontra-se, dá-se, existe. Vivo, logo amo.
O mundo exterior é de destruição, é o passado destruído da cidade de Hiroshima e a vida pregressa da atriz francesa Emmanuelle Riva; o interior, de construção ou de reconstrução – função do arquiteto de profissão do ator japonês Eiji Okada – a partir da tentativa fracassada de esquecimento de um passado traumático.
Okada é o contraponto à fala de Emmanuelle: realista, tenta viver o instável amor presente a despeito do passado sofrido da atriz. Eiji Okada faz o papel de arquiteto, mas Emmanuelle, é real, é ela mesma, atriz no papel de atriz-enfermeira. O arquiteto é o presente, não tem passado, apenas a atriz. O presente não existe porque precisa ser reconstruído, mas o passado é real e está destruído, ferido: há que ser refeito, curando-se as feridas.
Às imagens da abertura segue-se o texto da escritora francesa Marguerite Duras que, como num poema, na voz recitativa, pausada e sofrida de Riva, transporta o filme ao mundo literário do romance, onde a realidade dos fatos são enevoados pela dos sentimentos e entrelaça-se atemporalmente entre o passado e o presente. O ator japonês sempre nega Hiroshima, inexistente em sua memória; todo seu desejo é de construção do amor presente. Como na poesia, o filme é para ser sentido e interpretado.
Terrificante ao extremo, Alain Resnais contrapõe aos fatos trágicos, a mensagem da sublimidade do homem unindo antípodas irreconciliáveis: vida e morte, destruição e reconstrução, desespero e esperança, verdade e fantasia. A destruição de Hiroshima e Nagasaki é pano de fundo ao romance, cenário acessório mas coadjuvante necessário para a mensagem de Resnais.
Ao ver o tremular dos dedos do amado, ocorre à Riva a lembrança do seu primeiro amor que mais do que viu, sentiu seu corpo morrer junto de si. Neste momento, na única cena com vestes nipônicas, ela aparece com o yukata (quimono leve, de verão) vestido com a dobradura da morte (lado direito sobre o esquerdo).
Okada é a reminiscência viva do amor proibido de juventude assassinado, e ao mesmo tempo, a força do amor que a mantém viva na fria adega subterrânea de onde só pode ver a vida de um plano inferior, ouvindo inclusive a Marselhesa e os soldados franceses em orgulhosa marcha militar. Amou um soldado alemão das forças de ocupação da França, alguém que humilhara sua pátria. Na mesma moeda, Riva tem a dignidade usurpada, punida e humilhada por uma moral provinciana e primitiva. Extirpam-lhe sua feminilidade possível cortando-lhe quase todo o cabelo, ação em si insignificante diante do castigo maior da prisão, gesto apenas acentuador de uma agressividade insana. Seu pecado foi amar ignorando as efêmeras circunstâncias políticas e morais. Recupera sua auto-estima quando vai a Paris, cidade de maior profundidade e riqueza cultural e ao se tornar mãe, recupera sua sanidade. Pela personagem de Riva e de seu passado, Resnais parece deixar sua mensagem de engajado político, caracterizando, metalinguisticamente, o que foi a bomba de Hiroshima: coisa sórdida, de homens de moral primitiva e imediatista, mas cuja vítima, embora humilhada, se reergue das cinzas, se descobre, volta à normalidade psíquica ao fazer parte e dar prosseguimento à humanidade quando tem suas filhas. A vida segue movida pelo amor, a vida flui como os rios Ohta e Loire, a despeito de tudo.
Riva ama o amor, dando-lhe fascinante transcendência moral, étnica, política, de idioma, de tempo e de local. É o amor presente com raízes no passado. Revigora-se no amor, sempre belo e sublime, e é para ele que quer viver. Mas o preço é alto: o tempo é inexorável e fortes os laços matrimoniais de ambos. Como o salitre e o sangue da adega, temperos à sua atroz solidão, o amor, na sua essência, sobrevive, perpassa incólume e dá significado à vida de Riva. Os sofrimentos que o envolvem, valorizam sua existência passageira, conferindo-lhe especial sabor.
Ambos querem viver o amor presente intensamente, independentemente da amarra social do casamento, do passado sofrido e do futuro que inexistirá para ambos juntos. Sobreviventes provisórios da bomba, como disse Riva. Somos todos sobreviventes provisórios do amor. O amor é eterno, os homens, passageiros.
Resnais escreveu na tela a elegia do amor. Como na cultura japonesa, onde grande parte das artes têm a terminação do, que significa caminho – infindável porque a busca da perfeição é constante – Emmanuelle também está no caminho; vive esta busca incessantemente.
O passado e o presente do outro são desconhecidos. O mundo externo é estranho ao amor que se dedica ao ser amado.
A passeata filmada mostra cartazes bilingües e um diálogo de amor entre os amantes diante de um indiferente figurante vítima da bomba atômica. Mostra ainda familiares portando retratos dos mortos pela bomba e crianças carregando o origami do tsuru, amuleto da paz e da saúde. Ao fundo uma música folclórica, alegre, cujo refrão é “tenho fome”. Tenho fome de quê? De viver o amor acima das vicissitudes da língua? Da paz de crianças brincando?
O fluir de tudo, da próxima destruição da vida em Nagasaki, dos rios Loire e Ohta com seus sete braços desaguando no mar, da vida animal e vegetal que renasce da terra destruída, das águas que vêm e que vão, dos meninos que brincam no terreno onde se vê abandonado um livro sobre a paz, dos amores fugazes e intensos do presente permeados pela lembrança de um passado amargo e um futuro inexistente, conduzidos pela força da vida é a narrativa central do filme.
O bar de nome Doomu – ajaponesamento de domo, imagem que remete à cúpula semi-destruída pela bomba e que foi preservada como lembrança e advertência à humanidade, é onde os amantes travam o diálogo onde o tempo e os personagens se fundem: o passado lança raízes no presente e o presente está fortemente condicionado pelo passado, sugerindo fascinante perenidade ao episódio.
Os atores nem têm nome: ambos chamam ao outro pelos nomes de suas cidades: Hiroshima no Japão e a francesa Nevers. Identificam-se no passado destruído pela ignominiosa e estreita sordidez humana. Okada, porque lhe destruiram sua morada exterior, Emmanuelle porque lhe destruiram o que morava no seu interior.
Hiroshima é a única e singular Hiroshima da destruição, mas Nevers é candentemente o plural de Never.
One thought on “Hiroshima mon amour”
Ae Bruno!
Muito legal e bonito seu site!
Parabéns! Layout maravilhoso…
O conteúdo tb é mto bom, dei uma navegada e achei várias coisas legais…
Adoro o filme Sonhos, é maravilhos… obra de arte;;;
Já linkei você no Irradiando Luz!
Abração
Gabriel