An – sabor da vida
Baseado no romance An, de Durian Sukegawa, Naomi Kawase, dirige e adapta a história de uma senhora, aparentemente só e já doente, que passa conhecimento culinário do recheio do dorayaki, doce japonês cujo recheio é feito com feijão azuki. O seu desejo de fazer esse recheio, leva-a a se empregar numa pequena doceria e aí passa a produzir manualmente o recheio (an) que antes era comprado de fabricante industrial. É este o pano de fundo diante do qual se desenrola a particularidade do pequeno drama de cada personagem: frequentadora constante da doceria a adolescente Wakana, estudante do nível médio (na vida real neta da sra Tokue), vive apenas com a mãe num lar em conflito onde seu pequeno canário lhe faz companhia; Sentaro, o gerente da doceria trabalha não por opção, mas para pagar dívida à dona da loja e a sra. Tokue vive isolada num retiro para hansenianos na companhia de outros em situação semelhante.
Enredadas pelas circunstâncias, as três personagens têm em comum a solidão e a opacidade de suas vidas. Uma vida sem cor sem sabor. São os excluídos da sociedade, pessoas tornadas invisíveis pela desimportância de suas vidas: um ex-presidiário endividado, uma hanseniana de vida isolada e uma adolescente que vive num lar desestruturado. Tokue, excluída da sociedade pela doença que a acompanha desde adolescente, vive ali há mais de 50 anos. Idosa, de saúde frágil, é a que tem a finitude mais próxima de si, mas o olhar mais radiante, o sorriso mais espontâneo, as palavras mais doces, a alegria mais presente. É esse olhar que vê as cerejeiras em flor, o vento, a lua, os pássaros, as flores; é essa alegria que a faz conversar e se despedir das flores de cerejeira, que a faz receber com gratidão a oportunidade do trabalho. Foi essa espontaneidade que fez sorrir o taciturno gerente. “Nascemos para ver e ouvir a natureza”, recomendou aos amigos.
A doceria prospera, mostra a satisfação dos clientes, do gerente e da própria sra Tokue, responsável direta pelo sucesso. Seu emprego lhe traz estima por novos amigos e certamente por si, pela aprovação do seu trabalho. É quando pode mostrar e ensinar o preparo que envolve atenção, cuidado, carinho com o feijão. O processo requer paciência e serenidade, desde a escolha, o longo tempo de descanso na água, a afetuosa conversa com os grãos, o cozimento e o descanso. Cada etapa é executada com respeito e afeto, disciplinados nos processos e nos tempos de cozimento e descanso. “An é sentimento” afirmava. E respeitava-os dando-lhes tempo para “conhecerem” o sabor doce adicionado, “como dois namorados que precisam de tempo para se conhecerem” .
O suceder dos fatos muda a situação das personagens: dá significado e dimensão nas relações, suas vidas adquirem brilho, sabor. É como se houvessem libertado seu interior, aprendido a viver uma vida maior, mais plena, mesmo que fosse a última coisa a ser feita como no caso da sra Tokue.
O novo sabor do dorayaki é a razão do sucesso da doceria, o que faz iniciar uma cadeia de acontecimentos, cuja força motriz é iniciada na dinâmica do sentimento despertado pela presença e trabalho da sra Tokue. Sua personalidade simples abriga além do talento culinário, calor humano, afeto e apreço pelas pessoas. O talento foi a porta pela qual a sra.Tokue entrou na vida das pessoas. Sua personalidade lhe deu lugar cativo.
Ausente no trabalho por algum tempo, a sra Tokue recebe a visita do gerente e de Wakana. Debilitada, o que deveria ser a alegria do reencontro, tem o sabor de separação, de despedida: dispensam-se as formalidades da polidez dos cumprimentos e escusas. Tokue, viúva e abandonada pela família, diz que se sentia solitária e fica grata pelo canário levado por Wakana; que foi muito feliz por ter trabalhado junto com Sentaro. Como o clima da visita, conversam sobre os contrários necessários à harmonização e realçamento do sabor na comida: um pouco do doce no salgado, um pouco do salgado no doce. Wakana deixou a casa e Tokue havia se prontificado a cuidar do canário se fosse preciso.
Dias depois, a sra Tokue falece. Deixa aos amigos o legado com que instrumentalizou sua arte. Numa gravação diz da tristeza que viu no olhar do gerente quando o viu pela primeira vez. Confessou que também tinha esse olhar quando imaginava não poder romper a cerca que a aprisionava. Desculpa-se por ter solto o canário. Dizia ouvir-lhe pedido de liberdade.
Sutilmente a diretora Naomi faz uma crítica à industrialização que massifica e despersonaliza o preparo do alimento e mais declaradamente, à discriminação da sociedade aos portadores de hanseníase.
Embora trilhando fórmula segura de audiência de entretenimento quando se junta sabedoria e ternura à finitude da vida, Naomi põe delicada e profunda emoção na tela, sem ser piegas. Tokue, se não for seu alter ego, é a voz do tradicional Japão bimilenário na sua visão de mundo, da natureza, da efemeridade do ser humano, que enlaça afetuosa e delicadamente as pessoas na sua preciosa relação. É o Japão que compreende o que diz a lua, entende o homem como intérprete e parte da natureza, cuja vida está permanentemente emoldurada pelas árvores, pelas flores, pelo vento, pela chuva. Coerente com o eterno ciclo de morte e renascimento, foi plantada no terreno da instituição uma cerejeira, cujas flores Tokue tanto gostava. Não mais o ser humano, mas a natureza continua presente, individualizada no pequeno arbusto, que certamente terá sua presença apreciada, acolhida e agora, especialmente venerada pelo legado de vida que deixou a sra Tokue.
Obs. A atriz Kirin Kiki (sra. Tokue), recebeu diagnóstico de câncer da mama em 2004. Fez vários trabalhos após o diagnóstico, inclusive este, lançado em 2015. Faleceu no dia 15 de setembro de 2018, 25 dias antes do lançamento do seu último filme: Every day a good day.